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Os padrões de manipulação da mídia e o projeto de encarceramento em massa

29 de maio de 2018

As reflexões são resultados da pesquisa “Narrativas Brancas, Mortes Negras”, elaborada por um conjunto de ativistas e pesquisadores negros acerca da cobertura da Folha de S.Paulo sobre as rebeliões no sistema carcerário do início de 2017

Texto / Pedro Borges
Imagem / Luiz Silveira/Agência CNJ

Faz parte do cotidiano e dos bate-papos diários a constatação de que os veículos de comunicação manipulam. Essa não é uma grande novidade, nem uma afirmação inovadora que talvez deixe alguém surpreso.

Afinal, está cada vez mais difícil fechar os olhos para esse fato. A manipulação da mídia tem ganhado contornos cada vez mais dramáticos e está cada vez mais difícil defender os princípios do jornalismo de imparcialidade e neutralidade.

Diante disso, porém, sobram algumas perguntas. Como as mídias manipulam? E por que o fazem?

Uma pesquisa recente, realizada pela INNPD (Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas), CELACC-USP (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação), Ponte Jornalismo e Alma Preta, ajuda a responder esses questionamentos.

Durante um ano, os pesquisadores analisaram a cobertura da Folha de S.Paulo sobre a crise do sistema carcerário, como foi chamada na época, entre os dias 1 e 14 de janeiro de 2017. As rebeliões ocorreram nas cidades de Manaus (AM), Boa Vista (RR), e Natal (RN), e resultaram na morte de 119 pessoas sob a custódia do Estado.

O método utilizado foi a análise de conteúdo de Laurence Bardwin. A partir dos preceitos da cientista social, decidiu-se contabilizar as palavras mais e menos utilizadas ao longo da cobertura da Folha de S.Paulo, assim como as fontes mais e menos recordadas pelo jornal.

O resultado mostrou que 42% das palavras escritas se referiam ao Estado e 65% das fontes consultadas eram oficiais, ou seja, porta-vozes estatais. Em contrapartida, apenas 7% das fontes convidadas a opinar durante a cobertura jornalística da Folha de S.Paulo eram disruptivas.

As fontes disruptivas resultam de um conceito criado, com o apoio do chefe do departamento de jornalismo da USP, Dennis de Oliveira, a partir do termo “disruptivo”, ideia descrita por Clayton M. Christensen e publicada no artigo “Disruptive Technologies: Catching the Wave”. A palavra significa “ruptura e quebra da ordem hegemônica” e as fontes disruptivas, por conclusão, seriam pesquisadores e ativistas de movimentos sociais que propõem uma visão sobre o mundo que contrarie a dominante.

A disparidade dos números comprova a maior tendência do jornal a dar mais espaço para o Estado e significativamente menos aos movimentos sociais.

Com isso, a mídia deixa de cumprir com uma das suas principais funções, que é a de monitorar o funcionamento das instituições públicas. Afinal, como é possível fazer uma crítica contundente ao Estado sendo que o próprio Estado é a principal voz a ser ouvida?

Pior, quando faz isso, apresenta fragmentos da realidade, na medida em que convida um único tipo de fonte, e constrói uma nova realidade, de acordo com os interesses da grande mídia. Quem descreve esses procedimentos é Perseu Abramo na obra “Os Padrões de Manipulação da Grande Imprensa”, ao apresentar o oficialismo, ou seja, a imposição, por parte do jornalismo para o público, do olhar estatal sobre o problema em questão.

A narrativa sobre a crise do sistema carcerário defendida pelo Estado e retratada pela mídia ressaltou a barbárie dos detentos, pessoas destituídas de humanidade, e minimizou a superlotação e a privatização como marcas do sistema carcerário do país.

Os números aqui também são categóricos. Na cobertura de Natal (RN), por exemplo, por 70 vezes a palavra “massacre” e por 18 a “decapitado” foram utilizadas nas reportagens. Em contrapartida, por 3 vezes o termo “superlotação” foi recordado e a palavra “privatização” não teve nenhuma menção.

Sobre isso, vale apresentar outro padrão de manipulação destacado por Perseu Abramo, o da inversão. Quando é de interesse dos grandes veículo de comunicação, a mídia transforma o particular em geral e o geral em particular, assim como troca a sua versão pelo fato.

Abramo até brinca que quando a grande imprensa se depara com um fato que põe em xeque a sua versão sobre o tema, ela acredita existir um problema com o fato, não com a sua versão sobre o mesmo.

Neste caso, a barbárie e a falta de humanidade desses sujeitos transformaram-se nas causas do problema, deixando de lado qualquer questionamento sobre a superlotação e a privatização dos presídios.

Por último, vale destacar o padrão do ocultamento. A mídia reconstrói a realidade a tal ponto que um fato não noticiado sequer aconteceu.

Dessa maneira, parece inexistir como possibilidade de superação dos problemas carcerários no país a ideia do abolicionismo penal, uma concepção de que é possível construir um mundo sem prisões.

Perdem relevância também movimentos sociais e pesquisadores que apresentam uma visão disruptiva sobre a realidade, na medida em que representam apenas 7% do montante total de fontes ouvidas. Se eles não aparecem para comentar o tema, não devem ser importantes para a compreensão do problema.

O agravante está na aparição por uma única vez da palavra “negro” durante toda a cobertura. Mesmo quando o tema em questão é o sistema carcerário, uma das faces mais cruéis do racismo e do projeto de genocídio, a mídia hegemônica utiliza-se dos seus artifícios para silenciar um dos principais elementos para compreender o cárcere no Brasil: o racismo.

Abramo é também leitura obrigatória para se entender por que se manipula. Para ele, o fator econômico não é suficiente para justificar o investimento sobre veículos de mídia, afinal, a comunicação não é o negócio mais rentável no mundo, se comparada a outros nichos de mercado.

Ele acredita que a mídia é sinônimo de poder político e que o capital precisa da construção de consensos. É importante acreditar que a saída para o sistema carcerário é a criação de mais presídios e que para a segurança de todos é necessário se prender mais.

O resultado dessa ofensiva jornalística sobre o tema da segurança pública parece ter resultados diretos no crescimento desse mercado no país. O 4º Estudo do Setor de Segurança Privada (ESSEG), divulgado pela Fenavist em 2015, mostrou que o setor de segurança privada no Brasil saiu do faturamento de R$ 7 bilhões em 2002 para R$ 50 bilhões em 2015, o que representa crescimento de mais de 600%.

É necessário compreender os padrões de manipulação criados pelos grandes veículos de comunicação para desmistificar os princípios da neutralidade e da imparcialidade, subterfúgios da mídia dominante para transformar a sua versão sobre o fato em realidade absoluta.

É igualmente importante fortalecer projetos de comunicação como o Alma Preta e a Ponte Jornalismo, integrantes da pesquisa, para ser possível a construção de uma narrativa mais objetiva, que leve em consideração a complexidade do cotidiano para assim o jornalismo colaborar para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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