A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi oficializada no dia 10 de dezembro de 1948 na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que também tornou a data, em 1950, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. O documento marca um fato histórico que busca defender a dignidade das pessoas de todo o mundo e evitar os horrores vivenciados na Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, a defesa desses direitos ainda encontra entraves e barreiras, sobretudo para populações negras, mulheres, povos tradicionais, pessoas mais pobres e comunidade LGBTQIA+. A pandemia de Covid-19 também acentuou as desigualdades sociais e as violências já observadas no país, sendo uma das principais causadoras de violações de direitos humanos nos últimos dois anos.
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Em relação à violação de direitos contra a população negra, segundo Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, o Brasil tem intensificado um retrocesso no processo de violações de direitos humanos contra as pessoas pretas e pardas, representados pelos dados e pela exaltação ao autoritarismo feito em nível federal e local em diversas regiões.
“É um ano em que nós não temos o que comemorar em termos de defesa dos direitos humanos pelo que foi feito da parte da institucionalidade estatal em relação aos direitos das pessoas negras. Nós, pelo contrário, registramos novamente índices incompatíveis com o estado democrático de direito no que tange a violência institucional e também no que tange aos índices de homicídio”, pontua.
Dados da pesquisa ‘Justiça em Números’ de 2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidenciam que houve um salto na série histórica, registrada desde 2014, no número de casos na justiça relacionados a violações de direitos humanos. Em 2020, houve um aumento de 342% no número de novas ações para se ter acesso a direitos fundamentais.
“Diante da miséria e da fome, a gente não vê um governo brasileiro que reage a isso no sentido de atender a necessidade do povo. Pelo contrário, é um governo que trabalha contra a população, que precariza políticas, que retira direitos, que se nega a pagar auxílio emergencial e põe fim a programas assistenciais, como é o caso do término do Bolsa Família”, detalha Douglas Belchior, membro fundador da Uneafro Brasil, que integra a Coalizão Negra por Direitos.
De acordo com Enéias da Rosa, secretário executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil, duas questões centrais que devem ser feitas no contexto atual de violações aos direitos humanos no Brasil são a denúncia e a responsabilização.
“É preciso que a gente efetivamente denuncie e diga com todas as letras e abertamente que há responsabilizações, que há responsáveis por esses estado de coisas que vivemos no âmbito das violações, sobretudo no contexto da pandemia no Brasil. Eu acho que a sociedade civil brasileira, no âmbito das organizações, dos movimentos sociais e das várias articulações tem realizado isso muito bem”, comenta.
Veja algumas das violações de direitos humanos ocorridas em 2021:
– Brasil chega a 600 mil vidas perdidas pela Covid-19
Brasil é o segundo país com mais mortes por Covid-19 | Crédito: Foto: Pedro França/Agência Senado
No dia 8 de outubro deste ano, o Brasil ultrapassou 600 mil mortes de pessoas pela Covid-19, sendo o segundo país mais letal no mundo pela doença. Ações e omissões do governo federal em torno do enfrentamento ao novo coronavírus são apontadas por entidades da sociedade civil como principais responsáveis pela tragédia da pandemia no país.
Algumas ações listadas são a demora na compra de vacinas, o desencorajamento em relação à adoção de medidas preventivas contra o vírus sugeridas pela comunidade científica, a minimização da gravidade da pandemia e, mais recentemente, a negação sobre a obrigatoriedade de passaporte vacinal diante de novas variantes.
Esses foram processos também evidenciados durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. “O contexto de pandemia da Covid-19 no Brasil só veio a confirmar o que mais se temia, que é o fato de que a gente ainda passa por um real despreparo do Estado brasileiro para lidar com um problema sanitário de tal magnitude”, pontua Enéias da Rosa.
O secretário executivo da Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil explica que, este ano, o Brasil vivenciou o seu pior período em relação à pandemia, alcançando em alguns momentos picos de mais de 3 mil mortes por dia.
“Neste sentido a gente viu do ano passado para cá uma diminuição do investimento público da União para efetivamente enfrentar a crise sanitária em que a gente vive e que a gente convive ao longo desses dois anos em um período em que se deveria ampliar ainda mais. É claro que isso gera aprofundamento da crise sanitária, do desemprego, da pobreza e da fome no país”, destaca.
Segundo levantamento apresentado por entidades às instituições internacionais contra o governo Jair Bolsonaro neste ano e baseado em estudo do epidemiologista Pedro Hallal, estima-se que 467.093 mortes poderiam ter sido evitadas no Brasil, caso medidas como distanciamento social e restrições às aglomerações tivessem sido adotadas de maneira ampla.
De acordo com Enéias da Rosa, as consequências da pandemia têm um forte impacto sobre algumas populações de forma mais acentuada, como indígenas e comunidades tradicionais que tiveram um processo muito lento de vacinação, além da população encarcerada e em situação de rua.
“A crise provocada pela Covid-19 no país expôs de forma mais visceral ainda a dimensão racista e sexista no Brasil. Um estudo do IBGE também mostrou que mulheres, negros e pobres são os mais afetados pela doença. Esse padrão se explica pela desigualdade social e pelo preconceito que a gente vive no Brasil”, destaca.
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– Mais da metade da população em insegurança alimentar
Imagens de pessoas recolhendo ossos em caçambas e comprando restos de carnes que antes seriam descartadas circularam pelas mídias e evidenciaram o patamar de fome que o país chegou este ano. Em 2020, cerca de 116,8 milhões de pessoas, ou seja, 55,2% das famílias no país, tiveram algum grau de insegurança alimentar, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Os dados também revelam que quase 20 milhões de pessoas passaram fome.
O aumento do desemprego, a falta de políticas públicas e a inflação são alguns dos motivos que agravaram as desigualdades do país e o acesso a alimentos. Em meio a pandemia, cerca de 27,4 milhões de pessoas atingiram a pobreza extrema no Brasil, de acordo com levantamento da Fundação Getúlio Vargas.
“Um aspecto de violação que tem relação direta com o contexto da Covid, com falta de investimento público e com a falta de enfrentamento em um contexto de crise é o aumento da desigualdade e da fome no país. É o aumento da desigualdade em um período de pandemia onde os mais ricos ficam ainda mais ricos e a grande maioria da população, mais historicamente empobrecida e fragilizada, empobrece ainda mais”, destaca Enéias da Rosa.
Douglas Belchior destaca a importância da sociedade civil, diante desse cenário, em auxiliar famílias não atendidas pelas políticas do Estado. “Essa situação de barbárie só não foi maior por conta da ação dos movimentos sociais que denunciaram, que pressionaram o Estado e, por outro lado, sobretudo do movimento negro, que se organizou para levar comida aos famintos, para construir redes de solidariedade e de cuidados.”, pontua. Iniciativas como a Campanha ‘Se tem gente com fome, dá de comer’ se somam a essa força.
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– Ampliação da violência
“Um aspecto de violação é a ampliação das violências em várias perspectivas, seja da violência letal e policial nas periferias envolvendo, sobretudo, as juventudes negras, o aumento das violências com relação às mulheres, feminicídios mais fortemente também associados aos corpos negros, e o aumento dos despejos forçados envolvendo as populações mais pobres, seja no espaço rural ou urbano, em pleno período de pandemia e de crise”, enumera Enéias da Rosa.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 aponta que houve um crescimento de 4% em 2020 da taxa de mortes violentas intencionais no país, sendo que 78% dessas mortes foram com o uso de arma de fogo e 76,2% das vítimas eram negras. A violência contra a população LGBTQIA+ teve um aumento de 20,9% de agressões e 24,7% de homicídios no mesmo ano.
O estudo também levanta que o Brasil teve um registro de ligação com denúncias de violência doméstica contra mulheres a cada minuto em 2020. O Disque 190, número de emergência da Polícia Militar, recebeu 694.131 ligações desse tipo, um número 16,3% maior do que o ano anterior. Além disso, durante a pandemia, a cada três mulheres mortas no Brasil no mesmo ano, duas foram negras, o que representa 61,8% das mortes.
“O índice mais chocante, que é o ligado às mortes violentas, é um tema que não tem do governo federal nenhuma política pública e nenhuma liderança para enfrentamento a esse quadro. Esse é um retrato da ausência de políticas públicas de um lado e, de outro lado, de ostentação a políticas autoritárias e até incentivo para que elas aconteçam”, destaca Gabriel Sampaio.
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-Chacinas no Rio de Janeiro
O ano de 2021 também foi marcado por chacinas que deflagraram a violência estatal sobre as populações de favelas e periferias. Em maio deste ano, a chacina do Jacarezinho ocorreu na comunidade de mesmo nome no Rio de Janeiro, onde 28 pessoas foram mortas durante uma operação policial motivada por combate ao tráfico de drogas.
A ação ‘Exceptis’ da Polícia Civil foi considerada a mais letal realizada nos últimos 15 anos no Rio de Janeiro, tirando a vida de 27 civis e um policial. Alguns dos civis mortos nunca tiveram passagem pela polícia e as provas na cena do crime não foram preservadas. Soma-se a isso o fato de um morador ter sido atingido dentro de casa, de dois passageiros de metrô terem sido feridos por uma bala e estilhaços de vidro e o relato de moradores da comunidade que tiveram suas casas invadidas.
Já em novembro, nove corpos foram encontrados em um mangue no complexo de favelas do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Os corpos foram retirados do mangue pelos moradores do entorno e apresentavam marcas de tiros e sinais de tortura. A chacina aconteceu durante ação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) após o homicídio de um sargento da Polícia Militar.
“As violações no Rio de Janeiro aconteceram mesmo diante de uma decisão do Supremo Tribunal Federal de limitar a atuação policial nas comunidades. Elas ocorreram em um contexto em que o poder público e os agentes estatais responsáveis pela segurança pública desafiam a ordem do STF para reafirmar o traço mais cruel da necropolítica, que é o suposto direito do estado em prover a segurança pública acima das vidas negras dessas comunidades”, explica Gabriel Sampaio.
A Rede de Observatórios da Segurança registrou, até outubro de 2021, 38 chacinas no Rio de Janeiro, sendo que 27 delas partiram de policiais e tiveram 128 mortes.
“A mão armada do Estado não aliviou nem em um momento tão dramático quanto da pandemia. Sem dúvida, estimulado pelo governo Bolsonaro, que visa dar mais liberdade e estimular mais violência por parte dos setores armados oficiais. Infelizmente, grande parte dos governadores alinhados a essa ideia alimentaram esse tipo de posição que gera barbárie nas periferias e nos bairros negros”, destaca Douglas Belchior.
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– Homem negro é algemado à moto de PM e arrastado
Rapaz é algemado à moto de policial e arrastado pela via em São Paulo | Crédito: Reprodução
Em novembro, na Avenida Inácio Anhaia Melo, Zona Leste de São Paulo, Jhonny Ítalo da Silva, um jovem negro de 18 anos, foi algemado à moto de um policial militar e depois arrastado após uma suposta prisão por tráfico. O advogado do rapaz afirma que ele também foi torturado na viatura e na delegacia.
“Essa é uma das cenas que deve marcar a nossa história negativa e uma história que coloca a institucionalidade e o seu compromisso civilizatório em cheque. Esse abuso policial acontecido na Avenida Anhaia Melo, em São Paulo, é um episódio que não deve ser naturalizado”, pontua Gabriel Sampaio.
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-Gestão de Sérgio Camargo na Fundação Cultural Palmares
Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares, acumula um histórico de discordâncias e ataques ao movimento negro, além de ofensas à imprensa e abusos de poder em locais de trabalho. Em dois anos de gestão da instituição, não atendeu nenhuma liderança quilombola e registrou o menor número de emissões do certificado de autorreconhecimento de terras quilombolas, etapa fundamental na certificação desses territórios.
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-Ataques à imprensa
De acordo com levantamento da ONG Repórteres sem Fronteiras, aumentou em 74% o número de ataques do Presidente da República contra a imprensa durante os primeiros seis meses de 2021, em relação ao segundo semestre do ano passado. Foram 87 ataques registrados em comparação aos 50 proferidos por Bolsonaro nos últimos seis meses de 2020. Os ataques incluem intimidações, difamações e deslegitimação da atividade jornalística.
Os filhos do presidente e outros integrantes do governo também foram responsáveis por 331 ofensas contra a imprensa no primeiro semestre deste ano, um aumento de 5,41%. Com ataques cada vez mais violentos, as mulheres são os maiores alvos das ofensas. As redes sociais, sobretudo o Twitter, também foram os meios mais utilizados para a esses ataques aos jornalistas e veículos de comunicação.
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-‘Combo da morte’
Projetos de Lei em tramitação ameaçam os territórios indígenas | Crédito: Foto: Roberto Parizotti/ Fotos Públicas
Os direitos humanos das populações indígenas também foram constantemente ameaçados durante o ano de 2021. Hoje, tramitam no governo projetos de lei que podem alterar regras de proteção, exploração e demarcação dos territórios indígenas.
Um deles é PL n°490/2007, que prevê a instituição do ‘marco temporal’, o qual determina que só teriam direito às suas terras ancestrais, povos que estivessem nelas no dia da promulgação da Constituição Federal, em 1988. Outro é o PL nº 191/2020, que prevê a liberação da exploração das terras indígenas por grandes projetos de infraestrutura e mineração.
Em relação à preservação do meio ambiente, existem também projetos de lei tramitando que vão na contramão da proteção ambiental, como o PL n°510/2021, que regulariza invasões ilegais de terras ocorridas até 2011.
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